Laudatio a Elías Torres e a José Antonio Martínez Lapeña

(tradução de Ricardo Leitão a partir do texto original de Lluís Clotet)

 

“Eu, Elías e José Antonio estudámos na Escola de Arquitectura de Barcelona. Estando eu três ou quatro anos à frente, durante esse período não nos encontrámos em nenhuma ocasião. Terá sido por volta de 1982, quando ainda não nos conhecíamos, que vi pela primeira vez uma obra deles publicada – concretamente o projecto de reabilitação que fizeram na Igreja de l’Hospitalet, em Ibiza – que me deixara muito surpreendido e entusiasmado.

Aqui estão algumas dessas imagens.

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Na altura, perguntara-me de onde viria aquele trabalho, tão distinto dos ensinamentos e das referências que recebêramos na Escola?

Como explicar aquele súbito aparecimento de uma linguagem delicada, pessoal, eficiente, elaborada e simultaneamente leve, que parecia advir e difundir-se do próprio edifício?

Onde teriam eles aprendido a trabalhar aqueles elementos aparentemente heterogéneos de uma forma tão inata, quase sem ensaio prévio?

Responder a tudo isto não seria certamente fácil nem imediato, mas comecei a intuí-lo à medida que nos conhecíamos e íamos criando laços de amizade, enquanto envelhecíamos e partilhávamos, com frequência, as primeiras memórias da infância, convencidos de que ali residiam as verdadeiras fundações do modo de ser de cada um de nós.

José Antonio contara-me que entre os cinco e os dez anos vivera com os avós paternos em Mata Sobresierra, uma pequena localidade da província de Burgos onde aprendera todo o tipo de ofício com o seu querido avô Dionísio. Auxiliava-o na confecção de utensílios, no conserto de ferramentas, na atrelagem dos bois, na lubrificação das carroças, no afiar das foices e na confecção das selas. Com ele espalhava e aventava as colheitas na eira, ajudava-o a conduzir o tractor, a percorrer os montes reparando-os com pedras novas, a acender a palha no forno comunitário para fazer pão, a pescar caranguejos no rio, a fazer compotas e a participar na matança do porco e na preparação das suas carnes… entre muitas outras coisas.

Entretanto, Elías passara a infância em Ibiza, entre a casa dos avós no porto e os estaleiros, onde o seu avô e o seu pai, construtores navais, construíam barcos. Lá aprendera a desenhar na mesma mesa dobrável onde eram desenhadas as seções longitudinais e transversais dos reforços anelares, rodeado de ferramentas, compassos e hastes de óculos carey, que deformava com pesos de chumbo para desenhar curvas complexas… tudo isto impregnado de um forte cheiro a resina e a alcatrão.

Elías contou-me, entretanto, que o seu avô Antonio instalara no telhado um engenhoso dispositivo inventado por si para fornecer água quente para o chuveiro, e que o seu pai construíra uma magnífica clarabóia que podia ser regulada por um conjunto de barras, cordas e argolas que lhe permitiam ter, continuamente, uma luz agradável no seu quarto. Também Elías fazia os seus pequenos barcos com ossos de choco que nadavam no porto diante de si, e construía moinhos de vento, catracas, fisgas e pipas que fazia com junco e papel colado com pasta de farinha. Dos dois, ouvi histórias que contavam o ambiente particular em que viveram e inúmeras anedotas que, parecendo diferentes, eram na verdade muito parecidas.

Os dois viviam mergulhados num mundo artesanal no qual não havia qualquer fronteira entre as mãos e o cérebro, entre a teoria e a prática, a técnica e a expressão, o artesão e o artista, o produtor e o utilizador, o trabalho e o jogo, o útil e o belo.

Por outro lado – contaram-me – tratava-se de uma sociedade na qual se evidenciava uma relação estreita e clara entre o esforço pessoal e o resultado final desse esforço. Ligação que, por um lado, tornava impossível esconder dos outros a responsabilidade de cada um e que, por outro, estimulava o orgulho pelo trabalho bem executado.

Tratava-se de uma sociedade preocupada com um certo tipo de pragmatismo, a poupança e a durabilidade das coisas. Tudo era preservado e aproveitado. Tudo era consertado porque quase todos entendiam a construção e o funcionamento das coisas que utilizavam.

Este ambiente em que os dois cresceram, de grande força e coerência, num tempo em que as coisas se aprendiam realmente, moldou profundamente José Antonio e Elías. E fê-lo com tal intensidade que por detrás da personalidade e do imaginário de cada um, das diferentes formas que tinham de fazer as coisas, acabavam sempre por encontrar esse elo de ligação comum, fundamental, que os une aos dois.

Mais tarde ingressariam na Escola Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona onde se conheceram e onde quase ninguém sabia o que eles já sabiam – nada menos que saber o porquê da necessidade de construir, de transformar as coisas e, sobretudo, de como fazê-lo. Eles tinham visto isso de perto, tinham praticado, cada um à sua maneira e, de algum modo, tinham entendido.

Na escola encontraram um ambiente onde se valorizava a palavra, a representação, a fragmentação disciplinar, o pensamento… de certa forma distantes e desligadas da acção e do fazer. Tratava-se de um mundo universitário desvirtuado do que eles tinham experimentado como uma unidade natural e indivisível, um mundo onde naquela época coexistiam numerosos debates entre académicos, funcionalistas, venturianos, rossianos, semiólogos, sociólogos e políticos radicais, para dar alguns exemplos. Embora jovens, não caíram na ingenuidade de tentar compreender o mundo para o transformar, nem acreditaram nunca em possíveis paraísos futuros. Não deram grande importância a todas aquelas preocupações omnipresentes naquela altura, como o demonstra o facto de não encontrarmos vestígios daquelas influências, nem nos seus escritos, nem nas suas primeiras obras.

Além de novos colegas e de novas amizades, que não foram poucas, penso que a Escola não lhes trouxe nada de verdadeiramente relevante, tampouco questionou o que já haviam aprendido.

Começaram a trabalhar juntos pouco depois de terminar o curso e após um brevíssimo intervalo de dúvidas e provações, imagino que um dia terão caído do cavalo e decidiram lançar-se, determinados a recordar, valorizar e recriar aquela extraordinária cultura popular na qual viveram mergulhados durante a infância, que tão bem conheciam. Imagino que talvez apenas esta decisão poderá explicar como aquela magnífica obra de renovação da Igreja de l’Hospitalet surgiu como que por magia, repentina e aparentemente do nada.

Mas aquela cultura simultaneamente artesanal e rural, tão coerente, intensa, global, tão envolvente e sedutora que os influenciou enquanto brincavam, não só permeou aquele trabalho inicial e exímio, mas também viria a estruturar todo o seu trabalho posterior.

Em todas as suas obras, tão distintas entre si em escala e programa, encontramos evidências disso.

Vejamos algumas ilustrações.

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Esta entrada e montra de uma loja de ferragens, aparentemente discreta, é uma espécie de jogo de origami brilhante.

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Estas casas unifamiliares parecem querer demonstrar o jogo que verificamos quando se utiliza o modelo enquanto instrumento de projecto; modelo, esse, modificado constantemente sob o efeito das mãos que pensam e que poderiam manipulá-lo para sempre. A obra acaba por ser a expressão de um desses elos intermédios, provisórios, abertos e que estão longe do resultado concluído, sereno e fechado que nunca se procura alcançar.

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Muitas vezes a forma de abordarem as intervenções no património recorda-me as estratégias de remendar, consertar e costurar que viram e praticaram quando eram crianças. Na maioria das vezes são intervenções mínimas, localizadas, leves e engenhosas, que nunca se confundem com a base, que, pelo contrário, realçam, elavam e transformam. Talvez de um modo semelhante ao que tinham visto nos grampos de metal que remendam as fissuras dos potes de barro, ou nos pequenos latões polidos e brilhantes que mudam o carácter das grandes fachadas antigas.

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Quando se trata de organizar e qualificar grandes espaços, não procuram, de uma maneira tradicional, controlar o seu perímetro, mas antes plantar o seu interior com múltiplos objectos heterogéneos de grande carga escultórica, com a convicção de que desta forma será mais fácil e realista melhorar a sua condição urbana. A relação que se estabelece entre eles nunca é uma relação evidente, baseada numa geometria simples; é mais complexa e lembra a relação entre os brinquedos que ficam no chão por arrumar, sem uma ordem aparente, quando as crianças são mandadas para a cama.

E assim poderíamos continuar a olhar a sua obra desde esta perspectiva, encontrando por toda a parte traços claros daquela infância distante que tanto José Antonio como Elías fizeram questão de não esquecer, de não perder contacto com o que deles resta, de não se afastar do lugar nem das pessoas queridas que os acompanharam naquela experiência única e excepcional. Com este extraordinário material precioso e graças à sua enorme imaginação e sentido de compromisso, foram capazes de transformar esses materiais, mantê-los vivos e actuais, conseguiram escrever a partir deles novos e belos versos. Parabéns!”